: NONA ENFERMARIA: CLÍNICA MÉDICA: outubro 2009

domingo, 25 de outubro de 2009

Xantelasma palpebral

Xantelasma palpebral - estudo de 71 casos
Xanthelasma palpebrarum - study of 71 cases
Lorivaldo Minelli
Professor adjunto - doutor e chefe da Disciplina de Dermatologia do Departamento de Clínica Médica do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Fernanda Pegoraro de Godoi
Medicina do Centro de Ciência da Saúde (CCS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Décio Cunha Viana Filho
Medicina do Centro de Ciência da Saúde (CCS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Lúcio Baena de Melo
Medicina do Centro de Ciência da Saúde (CCS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Lílian Carla Mocelin
Medicina do Centro de Ciência da Saúde (CCS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Unitermos: xantelasma palpebral, epidemiologia, características histológicas.

Unterms: xanthelasma palpebrarum, epidemiology, histologic features.

Introdução

Os xantelasmas palpebrais são placas amareladas que se desenvolvem na pele em região periorbital. Essas placas planas ou ligeiramente elevadas podem ser moles, semi-sólidas ou calcáreas, frequentemente simétricas e com tendência a serem múltiplas e coalescentes. São o tipo mais comum dos xantomas, que são lesões cutâneas decorrentes do depósito de lipídios na pele. Os xantomas possuem aspectos variáveis, podendo apresentar-se como manchas, pápulas, nódulos ou placas infiltrativas, como observadas no xantelasma. O termo xantelasma é derivado do grego xanthos = amarelo e elasma = placa metálica. O curso evolutivo é lentamente progressivo, até estacionar-se por completo, sendo raras as involuções espontâneas. Embora essencialmente assintomáticas, elas se iniciam no ângulo interno do olho, disseminando-se daí para o resto da pálpebra, podendo ser grandes o suficiente para cobrir mais da metade das pálpebras superiores e/ou inferiores - estas com menor frequência -, comprometendo a estética facial e levando os indivíduos a procurarem serviço especializado.

Epidemiologia

Os xantelasmas são mais comuns em mulheres e tendem a aumentar sua prevalência com a idade. Apesar de serem um tipo de xantoma, 25% a 75% (média de 50%) são normolipidêmicos na maioria das séries, isto é, definidos inicialmente como tendo níveis normais de colesterol e triglicérides(1).

O mais frequente fenótipo hiperlipidêmico de Fredrickson (classificação baseada nos níveis de lipoproteínas e lípides plasmáticos) de pacientes com xantelasma é do tipo IIa (hipercolesterolemia familiar com aumento de LDL e colesterol). Com menor frequência foram encontrados os tipos IIb (caráter familiar com aumento das lipoproteínas LDL, VLDL, triglicérides e colesterol), III (disbeta-lipoproteinemia com aumento de IDL, colesterol e triglicerídeos) e tipo IV (aumento de VLDL e triglicerídeos). A prevalência do tipo IIa em pacientes com xantelasma é duas a três vezes maior do que a prevalência deste fenótipo em grupos de pacientes com dislipoproteinemias, mas sem xantelasma.

O xantelasma ocorre mais em diabéticos do que na população normal(2) . Em mulheres, a presença de xantelasmas palpebrais múltiplos, acompanhados de icterícia e prurido sugerem cirrose hepatobiliar primária(3).

Características histopatológicas

Histologicamente, os xantelasmas são infiltrados compostos por histiócitos espumosos com células gigantes de Touton (células gigantes multinucleadas com agrupamento central ou periférico de núcleos circundados por um citoplasma carregado de lipídio) ocasionais, assemelhando-se com outros xantomas, diferindo destes pela ausência de fibrose e pela localização superficial das células espumosas. Os histiócitos com frequência se localizam em torno dos capilares. Eles contêm vacúolos não limitados por membranas, cristais de colesterol, lisossomos e corpos residuais que são produtos finais da digestão celular. Alguns trabalhos mostraram que os xantelasmas em pacientes normolipidêmicos não diferem dos xantelasmas hiperlipidêmicos. Em ambos os histiócitos têm um arranjo perivascular, o que sugere que depósitos de lipídios surgiriam dos lipídios do plasma. O colesterol é o principal lipídio armazenado no xantelasma, estando na sua maioria na forma esterificada, embora tenha sido demonstrado que nos mais velhos, em comparação com as lesões mais jovens, o colesterol livre predomina. É possível que o colesterol que se acumula nos xantomas seja derivado da fração LDL, que entra no xantoma através dos capilares.

A estrita localização do xantelasma nas pálpebras sugere fatores locais. Os xantomas normocolesterolêmicos podem desenvolver-se em locais em que houve trauma, inflamação ou infecção cutânea, por provável alteração da permeabilidade vascular: as lipoproteínas entram na derme e são fagocitadas pelas células locais. Têm sido demonstrado experimentalmente que a taxa de extravasamento vascular do LDL é duas vezes maior nos xantomas que ficam expostos a movimentos físicos e fricção comparados aos xantomas que ficam em locais imobilizados, podendo esta ser a razão do por que os xantelasmas se desenvolverem nas pálpebras. Deve haver também uma sensibilidade intrínseca nestes pacientes para esta difusão capilar descrita.

Outro possível mecanismo pode estar associado com os próprios histiócitos da pele. Eles, como em outras células inflamatórias, são derivados dos monócitos. Na maioria das células, a atividade dos receptores de LDL é regulada pela concentração intracelular de colesterol, evitando o acúmulo dessa lipoproteína. As células derivadas dos monócitos, entretanto, possuem estruturas denominadas receptores acetil-LDL (ou receptores "scavengers", varredores) que não obedecem os níveis intracelulares de colesterol. Estudos in vitro demonstraram que a LDL modificada por acetilação poderia induzir a transformação de macrófagos em células escamosas via receptores acetil-LDL. Acredita-se que este mecanismo é regra para o acúmulo de gordura nas lesões ateroscleróticas. Por isso, níveis aumentados de oxidação de LDL podem estar relacionados com maior risco de aterosclerose. O baixo nível de HDL poderia ser um outro fator para a formação de xantelasma. Isto porque o HDL remove o excesso de colesterol nos tecidos(1).

Outra possibilidade seria uma mutação da apolipoproteína B-100, que quando alterada provocaria uma diminuição da afinidade do LDL pelo seu receptor, fazendo aumentar os níveis sanguíneos de LDL, o que resultou em xantelasmas em alguns paciente portadores da mutação(4).

O xantelasma parece estar associado com anormalidades no metabolismo lipídico quantitativa e qualitativamente, fazendo a deposição de lipídio na pele e na parede arterial. Mesmo quando os níveis de colesterol sérico e de triglicerídeos são normais, o paciente pode apresentar um risco aumentado de doença aterosclerótica(5). A taxa de prevalência de aterosclerose vascular e doenças do coração em doentes com xantelasma tem sido reportada como tão altas quanto 69% em algumas séries. Em um estudo, a presença de xantelasma foi uma das 12 maiores indicações de futura morte em 1.712 homens italianos entre 40 e 59 anos que foram observados por 25 anos. A presença de xantelasmas foi um indicador de óbito mais poderoso que a hipercolesterolemia, segundo análises desta casuística(1).

Com tudo isto, a presença de xantelasma seria um indicador benigno de uma doença sistêmica grave subjacente. O reconhecimento deste marcador cutâneo permite o tratamento precoce.

Diagnóstico

É essencialmente clínico. O exame para confirmá-lo é a biópsia, revelando a presença de células espumosas e células gigantes de Touton na derme. A pesquisa das anormalidades lipídicas também é indicada para avaliação e seguimento dos pacientes.

Tratamento

Correção da anormalidade lipídica com restrição dietética ou emprego de medicamentos, tais como ácido nicotínico, colestiramina ou clofibrato.

Remoção dos xantomas: aplicação do ácido tricloroacético a 70%, para lesões persistentes excisão cirúrgica, porém devem estar corrigidas as anormalidades metabólicas subjacentes.

Alguns resultados publicados sobre o tratamento, utilizando coagulação com laser de argônio, foram promissores. Num estudo(6), foram tratadas 32 lesões de tamanho aproximado de 34 mm2 e se observou que a terapia foi bem tolerada e que todas as lesões responderam ao tratamento, não ocorrendo complicações ou cicatrizes funcionalmente relevantes. Houve 12 recorrências após 12 a 16 meses. O método representa uma alternativa de tratamento em casos selecionados, sendo de fácil realização e muito bem aceito pelos pacientes

Outro trabalho(7) relata o tratamento de 22 pacientes com laser de CO2. O procedimento é realizado com anestesia local, sendo de fácil realização. Ocorre uma reepitalização da área sem deixar cicatrizes. Todos os pacientes ficaram satisfeitos com o resultado e houve recidiva em apenas dois casos, que foram retratados pelo mesmo método com sucesso.

Objetivos

1. Realizar uma revisão bibliográfica sobre xantelasma palpebral.

2. Traçar o perfil dos pacientes com xantelasma palpebral atendidos em uma clínica particular de dermatologia.

Metodologia

Estudou-se uma amostra consecutiva de 71 casos de xantelasma palpebral atendidos entre julho de 1989 e setembro de 1996 em uma clínica de dermatologia, em Londrina - PR.

Os dados foram obtidos a partir de fichas dos pacientes que apresentavam xantelasma palpebral, sendo que a amostra representa o total de números de casos desta doença atendidos nesse período. O método epidemiológico utilizado foi o desenho-individuado-observacional-transversal.
A partir dos dados obtidos foi preenchido um protocolo com as seguintes informações: data do atendimento, sexo, idade, cor, localização das lesões e história familiar. Os dados somente eram considerados presentes quando claramente citados no registro, sendo que dados dúbios não eram computados. Os dados após a coleta foram tabulados pelo programa EPI-Info em valores absolutos e relativos.

Resultados e discussões

Foram relatados 71 casos de xantelasma palpebral, sendo que 87,3% (62) eram do sexo feminino e 12,7% (9) do sexo masculino.

Em concordância com a literatura encontrada, os dados mostram realmente maior prevalência em mulheres(1). É importante assinalar que o primeiro motivo que leva o paciente à clínica dermatológica é o problema estético. Poderia aventar-se a possibilidade de que as mulheres procuram mais que os homens esse tipo de atendimento, podendo essa amostra não ser fidedigna se comparada com a da população geral.

A idade média do total de pacientes foi de 47,2 anos, sendo que a faixa etária com a maior prevalência foi de 40 a 49 anos (31% da amostra), seguida pela faixa etária de 30 a 39 anos (28,2%) da amostra.

A população masculina se apresentou mais velha que a feminina, com médias etárias em torno de 52,4 e 46,5 anos, respectivamente.

Quanto à cor, a incidência maior foi observada em brancos (93%), encontrando-se apenas 5,6% de amarelos.

Analisando-se a história familiar foi observado que 22 (31%) pacientes possuíam pelo menos um parente de primeiro grau com xantelasma palpebral.
Gráfico 1 - Análise de 71 casos de xantelasma palpebral atendidos em uma clínica de dermatologia.

As lesões xantelomatosas se localizavam principalmente em pálpebras superiores, mais frequentemente bilaterais, como foi observado em 42,3% dos pacientes. As lesões unilaterais também prevaleceram em pálpebra superior: os casos de ocorrência em pálpebra direita ou esquerda, somados, totalizaram 36,6% (26). Esses dados concordam com a literatura(3) que refere que as lesões ocorrem mais frequentemente na pálpebra superior. As lesões extensas, afetando todas as pálpebras (bipalpebrais direita e esquerda), ocorreram em 8,5% (6) dos casos, não estando relacionados com a idade, apesar da doença ser de caráter evolutivo. Não houve diferença entre as localizações das lesões em homens ou mulheres.
Como outros estudos(1) relacionaram a vigência de alterações hiperlipidêmicas em 50% dos casos de xantelasma palpebral, seria importante a realização do lipidograma em todos os pacientes com queixas de xantelasma palpebral, tanto para diagnóstico e encaminhamento como para o acompanhamento desses pacientes. Entretanto, nesse estudo, a análise do lipidograma não foi possível por falta de dados nas fichas.
Gráfico 2 - Análise de 71 casos de xantelasma palpebral atendidos em uma clínica de dermatologia - Distribuição das faixas etárias.

Conclusão

O xantelasma palpebral é um tipo muito comum de xantoma que afeta a pele. Neste estudo foi feito um perfil epidemiológico de 71 pacientes com xantelasma palpebral, sendo observado uma prevalência maior em mulheres. Em relação à idade, a população masculina se apresentou mais velha que a feminina, com médias de 52 e 46 anos, respectivamente. Houve prevalência quase absoluta da raça branca. Em 22 pacientes se encontrou história familiar de xantelasma palpebral. As lesões se localizaram em sua maior parte em pálpebras superiores (79%). Segundo a revisão bibliográfica realizada, a análise do lipidograma nesses pacientes é de fundamental importância para o seu acompanhamento, devido à associação de xantelasma palpebral com distúrbios do metabolismo dos lipídios e aterosclerose acelerada. Assim, o xantelasma palpebral serviria como indicador benigno de uma doença sistêmica grave subjacente (doenças cardiovasculares). O reconhecimento de um indicador cutâneo permite o tratamento precoce das alterações lipídicas, evitando-se complicações sistêmicas.

Bibliografia
1. Bergman, R.: The Pathogenesis and Clinical Significance of Xanthelasma Palpebrarum. In: J Am Acad Dermatol; 30:236-42, 1994.

2. Baumgartner, R; Spina, G.; Senn, B. Tumorous eyelid changes in systemic diseases. In: Klin - Monatsbl-Augenheilkd. May; 200(5): 543-4, 1992.

3. Montgomery, H. Diseases of metabolism. In: Montgomery, H. Dermatopathology. New York, Hoeber, Cap. 27, p. 783, 1967.

4. Tybjaerg-Hansen, A. Rare and common mutations in hyperlipidemia and atherosclerosis. With special reference to familial defective apolipoprotein B-100. In: Scand J. Clin. Lab. Invest. Suppl. 220: 57-76, 1995.

5. Stewart, Wm. D. at all. Metabolic disorders. In: Dermatology - Diagnosis and treatment of cutaneos disorders. Saint Louis, Mosby, Cap. 20, p. 382-384,1978.

6. Hintschich, C. Argon laser coagulation of xanthelasmas. In: Ophthalmologe.; 92(6): 858-61, 1995.

7. Ullmann, Y.; Har -Shai,Y.; Peled, I. J. The use of CO2 laser for the treatment of xanthelasma palpebraum. In: Ann Plast. Surg. 31(6): 504-7, 1993.

8. Korting, G.M. at al. Xantomas e lesões pseudoxantomatosas. In: Korting, G.M. Diagnóstico diferencial em dermatologia. São Paulo: Editora Manole, Cap. 32., p. 509-510, 1977.

9. Nakamura, T. et al. Non-macrophage-related acumulation of cholesterol during probucol treatment in familial hypercholesterolemia: report of two cases. In: Atherosclerosis. Feb.; 92 (2-3): 193-202, 1992.

10. Ribera, M. P. et al. Lipid metabolism and apolipoprotein E phenotypes in patients with xanthelasma. In: Am. J. Med. 99(5): 485-90, 1995.

11. Stetler, L.D.; Cruz Jr, P.D. Xanthomas and lipoprotein disorders- review article. In: Current Opinion Dermatology. 1: 101-108, 1994.

12. Romano Boix, E. et all. El xantelasma normolipidemico. Indicador de riesgo aterogenico. In: Revista Argentina Dermat.; 64(3): 296-8, 1983.

13. Brusco, O. et all. El xanthelasma y su valor como signo de hiperlipoproteinemia: estudio de 100 pacientes. In: Prensa Med. Argent.; 72(17/18): 591-9, 1985.

14. Alster, T. S.; West, T.B. Ultrapulse CO2 laser ablation of xanthelasma. In: J. Am. Acad. Dermatol.; 34(5 Pt 1: 848-9), 1996.

15. Oette, K. Xanthelasma and hypercholesterolemia. In: Hautzart. May; 46(5) 354, 1995.

16. Azulay, R.D. Hiperlipoproteiniemia tipo IIA: caso clínico com três manifestações dermatológicas. In: Na. Acad. Nac. Med. jul.-set.; 155 (3):140-3, 1995.

17. Sampaio, S.A. et all. Afecções metabólicas. In: Sampaio, S.A. Dermatologia Básica. 2ª edição. São Paulo: Artes médicas, Cap. 28. p.297-301, 1978.

18. Rosenman, H. et all. Pápulas, placas, nódulos e cistos. In: Bondi, J. et all. Dermatologia - diagnóstico e tratamento. Porto Alegre: Editora Artes Médicas,. Cap.5, p.149-151, 1993.

19. Romling, R. et all. A nonsense mutation in the apolipoprotein A-I gene is associated with high- density lipoprotein deficiency and periorbital xanthelasmas. In: Arterioscler. Thromb. Dec.; 14(12): 1915-42, 1994.

20. Haines, A. et all. Prevention of cardiovascular disease. In: Occas Pap. R. Coll. Gen. Pract.; (58): 67- 78, 1992.

Cópia na integra retirada do endereço:
http://www.cibersaude.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=432

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Momento de Reflexão

A Aceitação da Morte em Novela Russa

O tema da coluna de hoje refere-se a um drama presente na quase totalidade de nosso trabalho: o da nossa adversária, a morte. Sempre triste mas com características espirituais diversas, de pânico, de revolta, de tranqüilidade e, até, de aspiração. Uma apresentação impressionante da angústia de um enfermo perante o futuro demolidor encontra-se em novela do grande Leão Tolstoi, homem que ainda nos atrai por seu gênio e por sua escolha de vida. Trata-se de A MORTE DE IVAN ILITCH, publicada em 1886. E dela destaquei trechos que falam e que comovem, obtidos, em nossa língua, por tradução de Carlos Lacerda (1944).

O HOMEM E O AMBIENTE — Ivan Ilitch é Juiz no Tribunal de Relações. Representa o funcionário rigidamente ligado ao seu dever, considerado como "dever" tudo o que os superiores impõem. Aliás, essa inata obediência é característica presente em várias das antigas novelas russas, tudo se passando como se, em épocas passadas, ocorresse, como norma, a seqüência obrigatória no funcionalismo. Não era adulador, mas desde a mocidade sentira-se atraído por pessoas que ocupavam posições elevadas, "como mariposa pela luz" . Como todos, viveu, com prazer , aventuras da mocidade, mas sempre dentro dos limites "que seu instinto indicava como corretos" . Determinados atos que mais tarde lhe pareciam repulsivos, deixaram de deprimi-lo quando verificou que eles eram também habituais em pessoas de mais elevada categoria social, que não se consideravam faltosos. E aceitava uma expressão francesa "il faut que jeunesse se passe".

Para seu casamento escolheu a que lhe era agradável mas também que fora aprovada por seus amigos influentes. A vida familiar pareceu-lhe complicada e penosa, mas exigiu o cumprimento de seu dever, ou seja, o de "atitude de correta aprovada pela sociedade".

Com o tempo foi agraciado com ascenção a uma posição "duas classes acima de seus colegas", mas sempre mantendo atitudes de "agradável perfeição e de decoro".

Em síntese, homem simples, vulgar e disciplinado, com vida insípida e vulgar. Envolto na falsidade e hipocrisia do ambiente, em egoísmo desapercebido e afastador da solidariedade.

A DOENÇA E O AMBIENTE — Na montagem de nova residência em S. Petersburgo sofreu queda ao regular posição de cortina, com trauma no dorso. As manifestações clínicas pareciam desprezíveis de início, mas inexplicavelmente foram se acentuando. As dores aumentaram e tornaram-se limitadoras. Consultou vários médicos que mais o preocuparam por diagnósticos contraditórios e pela ausência de uma certeza sobre a natureza do mal.

Neste momento de nossa exposição cabe uma pertinente observação: nós, os médicos de hoje, não reconhecemos o tipo da afecção. E o grande Tolstoi nos parece inconseqüente e ignorante, ao informar que os facultativos hesitavam entre as possibilidades"de um rim recalcitante, de bronquite crônica ou de apendicite"!!. De qualquer forma as manifestações se nos afiguram afastadas do trauma anterior. O enfermo piorava dia a dia, com dores acentuadas, queda do estado geral e limitação física progressiva. Havia na boca um gosto desagradável e estranho e parecia ele que o hálito tinha mau cheiro. O sofrimento tornava-se persistente e exasperante. Passou, então, a se lastimar continuadamente nos círculos sociais e no Tribunal.

Esse seu desmoronamento mental e corpóreo veio conhecer o efeito depressor de duas ocorrências: a real indiferença das pessoas sadias e, mesmo, o tédio que provocava nelas. Até para a família tornava-se enfadonho, impertinente. Ninguém trazia amparo psíquico e poucos o suportavam. A própria esposa o criticou por não observância das determinações médicas (ineficientes!), atribuindo a ele toda a culpa pelos dias aborrecidos que vivia.

Em momento de grande angústia a esposa entrava em seu quarto com traje de noite para espetáculo em teatro. E a filha, com vestido de gala, chegava alegre e saudável em companhia do noivo, " amorosa, impaciente diante da doença, do sofrimento e da morte porque perturbavam sua felicidade". Por outra, no Tribunal, julgou observar uma estranha atitude em relação à sua pessoa, como se olhassem "um homem cujo lugar deve vagar" e, em compensação (!), parecendo caçoar de seus temores. Com clareza veio comprovando a indiferença que se mantinha e a mentira que alimentava todos; a falsidade no escamoteamento da verdade não para seu amparo, mas para a tranqüilidade pessoal. Após afastamento dos familiares ou despedida de visitantes sentia-se melhor, parecendo que "a falsidade saía com eles"

A única pessoa que o socorria era um camponês (um mujike), Gueresin, jovem e sadio, sempre apto a todas as atividades. Trazia um amparo principalmente nos momentos depressores das excreções, considerando o trabalho repugnante como ocorrência natural de seu emprego. Com o tempo a amizade entre ambos fortaleceu-se, com maior dependência de Ivan, em mais longas conversas e no auxílio necessário para manutenção das pernas elevadas, posição que o aliviava.

A piora sempre atuante, trouxe consigo o terror da morte. Sentia-se como que dentro de um saco negro, nele mantido por uma força invisível e irresistível. O temor persistia e se acentuava apesar de todas as tentativas, anulando qualquer apoio da esperança.

A MORTE SERENA — Nos dias finais ocorreu um sentimento depressor: a análise sincera e lúcida de sua vida passada, com o sentimento dominante de sua vacuidade, de sua superficialidade, de suas iniciativas para obter apenas o que era aconselhável para as pessoas de elevada posição social. Uma existência preenchida somente por interesses mundanos e oficiais. E surgiu, então, uma atitude que Tolstoi caracterizou com precisão: Tentou defender esses aspectos perante si mesmo e subitamente compreendeu a fraqueza do que estava a defender. Não havia nada a defender.

Na seqüência do tempo manifestou-se, entretanto, uma sensação inesperada e recompensadora. Enxergou luz no interior do saco negro e percebeu que sua vida, embora afastada do que poderia ter sido, ainda podia ser corrigida.

Duas horas antes da morte seu filho entrou lentamente no quarto, Sua mão acariciou a cabeça do menino que a segurou, levou-a aos lábios e caiu em pranto. Sentiu pena dele; a esposa o observava com desespero, "em lágrimas e com olhar dramático". Teve pena dela também. Compreendeu que os estava atormentando e que, embora lamentando sua morte, eles sentiriam alívio com sua partida.

Observou, então, claramente que a sensação que o oprimia ia se dissipando e o abandonava. E a dor, mesmo presente, não o agitava: "deixe a dor doer".

O próprio temor da morte, cotidiano e sufocante, não mais se manifestava.

Onde estaria a morte? Que morte? Não havia medo porque não havia morte. Em lugar dela surgia luz e sentiu-se, então, quase alegre.

Sua agonia durou mais de duas horas e quando ouviu a palavra final de um circunstante, Acabou, apenas pensou Acabou a morte; a morte já não existia. Aspirou, então profundamente e faleceu em real serenidade.

Essa longa e dramática novela de Tolstoi faz presente, com grande penetração, uma situação que nós, médicos, acompanhamos durante anos e que representa uma face triste de nosso trabalho.

Ela expõe também a condenação de uma vida egoísta e vazia, apenas socialmente ambiciosa e que deve ser corrigida. E isto ocorre na bela parte terminal do texto, como conquista espiritual. O que justifica o ato de viver é a solidariedade, ativa e iluminada que aniquila o eu egoísta e fornece a paz interior.

Uma lição para todos e, em particular aos médicos, em sua imperativa atuação de sabedoria, mas também de amparo, de compreensão, de tolerância e de paciência.

Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt(1911-2007)

Décourt, L V , A Aceitação da Morte em Novela Russa , http://www.incor.usp.br/r-conteudo-medico.htm
Foto: Access To Life/Russia(© Alex Majoli/Magnum Photos)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Artrite reumatóide: consenso brasileiro atualizado, diagnóstico e tratamento

A Artrite Reumatóide (AR) faz parte do grupo das doenças auto-imunes, sendo caracterizada por sinovite simétrica erosiva, deformante e incapacitante em casos mais graves, podendo algumas vezes, cursar com comprometimento sistêmico.
Constitui , aproximadamente 10% das queixas articulares, acomete homens e mulheres na proporção de duas a três vezes mais freqüente em mulheres, com maior incidência na faixa etária entre 50 e 70 anos, aumentando com a idade.
É uma patogia inflamatória crônica, caráter progressivo e de etiologia desconhecida, especulando-se uma provável causa infecciosa para a doença (vírus Epstein-Barr, parvovírus B19 e vírus da rubéola), mas ainda sem evidências conclusivas, até o momento.
O diagnóstico precoce é essencial para iniciar o tratamento da doença antes do surgimento de danos severos e irreversíveis. Atualmente, existem tratamentos eficazes para o seu controle, e que associados à fisioterapia mantém o individuo ativo, retardando o surgimento de incapacidade funcional nas articulações comprometidas.
VIDE:
Atualização do consenso brasileiro no diagnóstico
e tratamento da artrite reumatóide: http://www.scielo.br/pdf/rbr/v47n3/03.pdf

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Nevo gigante

Nevo gigante
Paciente do sexo masculino, 17 anos, apresentava edema doloroso em face anterior do tórax após se envolver em uma briga na estrada. Ele tinha uma “marca de nascença” no peito que havia crescido de forma constante até o seu tamanho atual.
Ao exame foi visto nevo melanocítico congênito gigante ambar negro, ovalado , medindo 32-por-21-cm, de bordos bem definidos, esponjoso, piloso, que ocupava a parte inferior do tórax e epigástrio (figura A). O nevo era quente e levemente doloroso ao toque. Haviam múltiplas lesões satélites sobre o tronco, face, pernas, mãos e costas (figura B, seta). Não foram identificados déficits neurológicos ao exame clínico. Os nevos congênitos,são proliferações benignas dos melanócitos na derme, epiderme, ou ambos, ocorrem em 1 a 2% dos recém-nascidos. Se o nevo tem diâmetro superior a 20 cm , é classificado como gigante e lesões satélites são freqüentemente encontrados nestes pacientes. Os nevos gigantes congênitos podem gerar problemas cosméticos levando a problemas no convívio social e depressão,podem sofrer malignização(melanoma), ou ser uma parte da síndrome rara de melanose neurocutânea, que é caracterizada por nevos melanocíticos congênitos e neoplasias melanoticas do sistema nervoso central.
Os sintomas do paciente melhoraram com antibioticoterapia oral. Apesar da discussão sobre o risco de melanoma subseqüente, o paciente e seus pais recusaram a ressecção cirúrgica do nevo gigante.

Fonte:
Imagem in clinical Medicine,NEMJ,Volume 361:e15,September 3,2009 Number 10
Tamilarasu Kadhiravan, M.D.
Surendra K. Sharma, M.D., Ph.D.
All India Institute of Medical Sciences
New Delhi, India sksharma@aiims.ac.in

Comentários
Classificar um nevo congênito como gigante não basta para definir qual a conduta que deve ser tomada, havendo vários outros aspectos que necessitam ser levados em consideração.

Classicamente apresenta as seguintes características microscópicas(2):
- presença nos 2/3 inferiores da derme, ocasionalmente se estendendo até o subcutâneo.
- células névicas individuais distribuídas entre as fibras colágenas.
- associação com apêndices cutâneos, nervos e vasos localizados na derme reticular.
Interessante é o fato que o envolvimento da derme está presente desde o período neonatal, contradizendo a hipótese da migração das células névicas no decorrer da infância. Estas células profundas não se modificam com o decorrer da idade(3).
O nevo melanocítico congênito pode ser classificado de uma forma arbitrária conforme a medida do seu tamanho na infância: pequeno (<> 20 cm de diâmetro)(2,3). Porém o mais racional é estabelecer a proporção da superfície cutânea acometida pelo nevos, pois acredita-se que o risco de desenvolvimento de um melanoma seria diretamente proporcional ao tamanho do nevos.
Pode-se afirmar que os três principais problemas relacionados com o nevo melanocítico congênito, sobretudo o nevo gigante são: a possibilidade de transformação maligna, o acometimento neurológico e as implicações relacionadas com o aspecto estético. De todas sem dúvida alguma o mais preocupante é o potencial de malignização.
Geralmente o nevo melanocítico pequeno apresenta células névicas confinado as camadas superiores da derme, ao passo que o nevo melanocítico gigante possui as características histológicas clássicas já descritas. Dessa forma o melanoma que se origina do primeiro tem freqüentemente origem epidérmica. Em contra partida, mais de 2/3 dos melanomas oriundodo nevo gigante se desenvolvem a partir da derme. A origem desses pode ser de melanocíticos localizados em qualquer nível entre a junção dermo-epidérmica e as meninges. Tanto isso é importante que 3/4 dos tumores relacionados com os nevos gigantes não se desenvolvem a partir dos nevos cutâneos, mais sim de melanócitos localizados nos tecidos profundos, notadamente nas meninges(3). 20% dos portadores de nevo melanocítico gigante localizado no dorso superior e no segmento cefálico apresentam alterações ao eletroencefalograma (3),bem como a ocorrência de melanose meningea assintomática ou pouco sintomática. Nesta condição, recomenda-se à realização de um exame neurológico e até mesmo um estudo radiológico (ressonância magnética)(3).
Infelizmente as possibilidades terapêuticas atuais para a melanose das meninges são praticamente nulas(5).
Do ponto de vista prático, devido ao fato da quase totalidade dos melanomas originados dos nevos congênitos pequenos serem epidérmicos, e a incidência de degeneração ser extremamente baixa, a remoção profilática desses nevos não é essencial. De acordo com as evidências atuais, a observação clínica seria capaz de detectar esse tipo de ocorrência(6).
Se a decisão for remover esse tipo de nevo, realizá-la após a puberdade seria um ato seguro, pois a transformação maligna raramente ocorre em pré-puberes.
Todavia, pelo o alto risco de transformação maligna nos nevos melanocíticos gigantes,estimada entre 5% a 20%,a excisão profilática é com freqüência recomendada(5).
Dentre as técnicas cirúrgicas de remoção e reconstrução as empregadas são: a exérese parcelada do nevo (forma mais comum quando as lesões estão presentes nas extremidades)(7), reconstruções com expansores teciduais (principalmente nos nevos localizados no segmento cefálico, notadamente no couro cabeludo)(7,8) e enxerto livre. Devemos destacar, entretanto que não raro estes procedimentos são incompletos, necessitando de múltiplas intervenções traumáticas para o portador do nevo, acarretando em alterações funcionais e deformidades secundárias graves.
A metade dos tumores malignos aparece antes dos 3 anos e são geralmente mortais. Mesmo assim, a ocorrência do melanoma de uma forma geral, (não apenas relacionado com o nevo congênito), antes da puberdade é rara, correspondendo a 0,4% do total dos casos(9). O diagnóstico precoce de um melanoma sobre um nevo gigante é de regra difícil, muitas vezes impossível, devido à cor enegrecida das duas lesões.
Outros sinais de transformação maligna, como o desenvolvimento de um tumor ou ulceração, são tardios e geralmente acompanhados de metástases. Devemos considerar também a dificuldade de se estabelecer com exatidão o diagnóstico histopatológico do melanoma na infância. Alguns critérios histológicos foram propostos relacionados com a possibilidade de malignidade(12):
- epidermotropismo de células isoladas na periferia da lesão.
- número elevado de mitoses e de atípias citonucleares.
- ausência de maturação das células névicas.
- presença de invasão vascular.
Porém na maioria dos casos este diagnóstico acaba sendo de probabilidade, só podendo ser afirmado com certeza quando associado a metástases. O estudo de marcadores de células tumorais por anticorpos anti-Ki67 pode ser um argumento suplementar na orientação no sentido do diagnóstico de melanoma(6).
Infelizmente, com freqüência é impossível de proceder à excisão completa por causa do tamanho desses nevos, e também por apresentarem múltiplas lesões satélites.
Mesmo a excisão até a fáscia muscular não elimina completamente o risco do aparecimento do melanoma, visto que essa célula primordialmente neural freqüentemente permanece nos tecidos profundos, sobretudo nas leptomeninges(1).
Diferente do nevo congênito pequeno, o risco de degeneração dos nevos gigantes é maior antes dos 10 anos de idade. Portanto para ser profilática, a remoção deverá ser realizada o mais precoce possível. Devemos considerar também a indicação de exérese dos nevos melanocíticos gigantes baseado em razões estéticas e psicológicas(6).Na verdade a maior preocupação dos pais de crianças portadoras de um nevo gigante, principalmente quando localizado em uma área mais exposta do corpo, é com o aspecto estético e seu impacto psicossocial, sobretudo em meninas. Este problema em geral assume uma magnitude tão importante que o médico não pode subestimar. Apesar da impossibilidade da remoção cirúrgica de boa parte dos nevos gigantes, a melhora do aspecto estético por outros meios a serem descritos a seguir pode contribuir na melhora da qualidade de vida, considerando-se, porém as dúvidas que ainda imperam quanto às repercussões sobre o risco de transformação maligna. Os principais métodos empregados para a melhoria do aspecto estético são: a dermoabrasão, a curetagem, o peeling químico com fenol e o laser. Todos produzem a remoção de células névicas presentes na junção dermo-epidermica e na derme superficial. Os que advogam a favor desses métodos justificam que, além da possibilidade de melhoria do aspecto estético, a remoção da pigmentação mais superficial facilitaria o diagnóstico do melanoma que porventura se desenvolva na derme profunda. A recomendação é que se realize o procedimento o mais precoce possível, durante as duas primeiras semanas de vida.

REFERÊNCIAS
1.Paschoal F. M.,Nevo melanocítico congênito,An bras Dermatol, Rio de Janeiro, 77(6):649-656, nov./dez. 2002.
2. Kanzler MH, Mraz-Gernhard S. Primary cutaneous malignant melanoma and its precursor lesions: Diagnostic and therapeutic overview. J Am Acad Dermatol 2001;45:260-76.
3. Ruiz-Maldonado R, Tamayo L, Laterza AM, Durán C. Giant pigmented nevi: Clinical, histopathologic, and therapeutic considerations. J Pediatric 1992;120:906-11.
4. Rhodes AR, Wood WC, Sober AJ. Nonepidermal origin of malignant melanoma associated with giant congenital nevocellular nevus. Plast Reconstr Surg 1974;53:421-8.
5. Ruiz-Maldonado R. Conduite à tenir vis-à-vis des naevus géants congénitaux. Ann Dermatol Venereol 1999;126:792-4.
6. Benoit-Durafour F, Michel JL, Godard W, et al. Mélanome néonatal sur naevus géant congénital. Ann Dermatol Venereol 1999;126:813-6.
7. Gosain AK; Santoro TD; Larson DL; Gingrass RP. Giant congenital nevi: a 20-year experience and an algorithm for their management. Plast Reconstr Surg 2001;108(3):622-36.
8. Bauer BS; Few JW; Chavez CD; Galiano RD. The role of tissue expansion in the management of large congenital pigmented nevi of the forehead in the pediatric patient. Plast Reconstr Surg
2001; 107(3):668-75.
9. Taieb A, Bioulac-Sage P, Maleville J. Mélanoma de l'enfant. Ann Dermatol Venereol 1990;117:139-48.